Por entre as escadarias e ruelas, com o sol
despontando dentre os morros, e o frio gelando as extremidades, seguiam todos
para o ponto de ônibus. Não era um dia especial, muito pelo contrário. Era mais
uma segunda-feira de trabalho, e o horário do ônibus fez todos apertarem o
passo. Dessa vez, porém, o ônibus não passou. Aos poucos, a multidão foi se
aglomerando em volta do ponto, onde nenhum ônibus havia passado desde o nascer
do dia. Em meio à confusão, um telefone celular, um wi-fi, uma informação: não
foram apenas eles os afetados pela falta de ônibus, mas toda a periferia da
cidade.
A
cidade, aliás, era curiosa. No centro, uma ilha de concreto, com arranha-céus,
shopping-centers e carros imponentes, ocupados geralmente por uma ou duas
pessoas. A palavra ilha, por sinal, não era uma metáfora, mas uma realidade. O
rio que a cortava a cidade bifurcava-se em determinado ponto, e seguia em
direções diferentes, para, um pouco mais à frente, juntar-se de novo, criando
condições para o surgimento de um núcleo urbano plano e espaçoso. Em volta
desse núcleo, nas margens do rio, porém, estranhamente sucediam-se morros sobre
morros, que cercavam a cidade desenvolvida e nos quais apinhava-se a grande massa
da população local. Atraídos pelas maravilhas da ilha desenvolvida, quase todos
os habitantes dos morros deslocavam-se para lá atrás do sonho urbano, e
acabavam sendo os grandes responsáveis pela construção da riqueza da cidade –
ainda que não pudessem usufruir dessas condições.
Entre
a ilha e os morros, erguiam-se pontes que, silenciosamente dividiam a cidade.
Não que fossem fechadas, ou controladas, mas inibiam o contato real entre ambos
os lados. Como dito, grande parte da população periférica deslocava-se para o
centro todos os dias para trabalhar, mas a relação era exatamente essa: apenas
profissional. Aquela não era a cidade deles, e eles estavam ali apenas a
serviço dos engravatados da ilha. Cidadãos que, imersos em seus latptops e
tablets, não eram capazes nem de cumprimentar aqueles que todos os dias
limpavam suas mesas e colocavam gasolina nos seus carros. As pontes, assim, não
conectavam a ilha com os morros, como se poderia supor, mas sim separavam
radicalmente seus habitantes. Sob a fachada da integração, as pontes serviam
para permitir que o morro produzisse a riqueza da ilha, mas sem acessá-la
verdadeiramente. Eram, por assim dizer, o símbolo maior da fábula da cidade
unificada.
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E
foi em direção a essas pontes que os moradores da periferia caminharam quando perceberam
que nenhum ônibus passaria para levá-los ao trabalho na ilha. A paralisação,
porém, não ocorreu sem aviso. Pelo contrário, os motoristas e cobradores
percorreram, na noite anterior, com alto-falantes e carros de som, todos os
morros circundantes da ilha, avisando aos moradores da periferia que não
trabalhariam na manhã seguinte. Não foi anunciado em nenhum tele-jornal, nem
postado em qualquer rede social. O aviso foi dado fisicamente, rua por rua,
porta por porta, mas ninguém ouviu. Reunidos em volta da ponte, os afetados
pela paralisação não acreditavam que simplesmente não perceberam o aviso.
Perceberam, sim, que aquele mundo mágico e ilusório da ilha havia penetrado em
suas vidas particulares, em pleno morro. As noites, que antes eram desenroladas
por longas conversas no muro de casa e nas mesas de bar, de uma convivência
coletiva e de um território compartido, tinham sido substituídas pela solidão
da internet e pela surdez ao próprio entorno. O único som ouvido era o da
televisão, e a única realidade existente era a passada pelo noticiário. Estavam
conectados com o mundo todo, menos com seu próprio lugar. Parados na ponte, juntos,
enfim tomaram consciência. E decidiram bloquear os acessos.
Os
dias se passaram. Estranhamente, os habitantes da ilha não foram até as pontes
entender o que havia acontecido. Na verdade, não sabiam o caminho. Sabiam que
seus empregados e funcionários viviam perto de sua próspera cidadela, mas nunca
se interessaram em saber onde realmente era. Quem realmente eram. Obviamente
que sentiram sua falta. Mas resolveram como sempre resolviam tudo: consumindo.
Como não tinham ninguém pra lavar sua louça, compravam pratos novos a cada
refeição. Trocavam o piso cada vez que este acumulava um pouco de sujeira. As
lojas e mercados, porém, foram escasseando. A comida faltava, os pratos e o
piso não podiam mais ser repostos. Ficaram todos desesperados. Até que
alguém teve uma ideia.
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Antes
da fundação da cidade, viviam alguns poucos grupos entre as margens do rio, no
exato núcleo onde se desenvolveu a ilha de concreto, em cuja construção tais
grupos ficaram para o lado de dentro. E se recusaram veementemente a sair.
Ergueram-se prédios, escavaram-se metrôs, e aquelas casinhas simples
continuavam lá. Foram ameaçados, alguns inclusive foram mortos, mas nunca
saíram de lá. Vinham de um tempo onde o território era parte deles mesmos, e
não seriam alguns quilos de concreto que fariam com que se mudassem. Com o
progresso, foram esquecidos. Os quarteirões onde moravam eram desvalorizados,
tidos como perigosos. Eram resquícios de um tempo passado, descompassado com a
modernidade. Rugosidades de um mundo planificado e retilíneo. Aquelas pessoas,
sem dúvida, sabiam como sobreviver na dificuldade. E foi por isso que, desorientados,
os habitantes da ilha foram buscar ajuda justamente naqueles que tentaram eliminar
por tantos anos e séculos.
O contato inicial, obviamente, não
foi amistoso. Os habitantes da ilha insistiam na arrogância de tratar os
remanescentes de forma servil, enquanto esses não demonstravam nenhum tipo de
solidariedade para com os primeiros. A relação foi amolecendo, porém, na medida
em que ambos perceberam que estavam no mesmo barco. Por maior que fosse a
distância entre eles, em todos os aspectos, estavam unidos por uma mesma
situação de confinamento forçado na ilha. Enquanto as pontes permanecessem
interditadas, o abastecimento local ficaria impossibilitado, e outras formas de
sobrevivência precisariam ser desenvolvidas. Os mercados ficaram vazios, e o
dinheiro perdeu sua utilidade. Acostumados que estavam a serem governados pelo
dinheiro, os habitantes da ilha não conseguiam enxergar outra forma de se
conseguir alimentos que não os comprando.
Nesse momento, os remanescentes de
tempos pretéritos, insistentes como sempre foram, disseram que mesmo naquele
mar de concreto era possível encontrar algum espaço para plantar algumas frutas
e legumes. A velocidade das plantas, porém, não é a mesma da cidade, e por isso
teriam que ser pacientes. Mais do que isso, teriam de frear seus hábitos de
consumo desmedido, desacelerando drasticamente seus espíritos empreendedores e
imediatistas. Se até ali o acesso a qualquer produto ou informação se dava em
tempo real, era chegado o momento de saturação. O relógio não seria mais aquele
dos micro-segundos e da eficiência, seria a vez do tempo necessário, o tempo
orgânico. E assim, lenta, porém verdadeiramente, a ilha se fazia existir pela
primeira vez.
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Ao mesmo tempo em que a ilha
passava por profundas transformações, os morros também se agitavam. Indignados
com a falta de relação com seu território, os habitantes da periferia buscavam
uma maneira de resgatar essa simbiose. Lembravam das estórias de seus pais e
avós, do tempo em que a calçada era a extensão das casas e a cultura era
construída ali, na rua. As músicas, os artistas, as festas, todos eram fruto de
muito trabalho coletivo e da vivência de um território compartilhado.
Diferentemente da cultura de massa, enfiada goela abaixo pelas grandes mídias e
representativa de uma realidade bem distante de seus receptores, a cultura
popular era, sobretudo, uma manifestação dos lugares e de sua gente. A questão
para as pessoas do morro não era mais o que procurar, mas sim onde procurar
esses registros.
Sem perceber, porém, ao consumir as
tecnologias modernas, milhares de pessoas, munidas do mais simples dos equipamentos
audiovisuais, tinham registrado nos últimos anos centenas de manifestações locais,
de dança, canto, e qualquer ação que se desenrolava fora da ilha de concreto.
E foi exatamente a partir desses materiais que os habitantes das periferias
puderam ter contato com sua cultura, puderam ver e ouvir registros históricos
de seus ancestrais, e pensar a possibilidade de um novo cotidiano.
Reunidas, as pessoas rumaram
novamente para as pontes, no intuito de mostrar à ilha do que eram feitos
aqueles que construíram sua cidade, ao mesmo tempo em que os habitantes da ilha
seguiam o mesmo caminho, procurando conhecer todo o universo que compunha a
cidade e com o qual eles não tinham nenhum contato verdadeiro.
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Se engana, contudo, quem acha que o
encontro, cada grupo em um lado da ponte, foi de abraços e pedidos de desculpa.
A relação entre a ilha e os morros foi sempre de hostilidade, e não seria no
primeiro contato real entre eles que iria haver um consenso. Ambos tinham
aprendido que por mais tentador que fosse, o imediatismo era superficial, e ao
invés de tentar uma conciliação instantânea, começaram a se insultar
desmedidamente. Havia sim aqueles que tentavam contemporizar, a multidão nem
sempre é una, e sempre existem os que preferem o diálogo, mas não foi
suficiente. De insultos, passaram a atirar paus, pedras, celulares e
televisores uns contra os outros. E decidiram ambos os grupos que não iriam
sair dali até que fossem vitoriosos no confronto. Esqueceram-se de tudo que
tinha acontecido até ali, da consciência que lhes tinha despertado, e do quanto
seus opostos foram importante para isso. Para eles, no momento, quem
controlasse a ponte, quem dominasse o acesso, seria o verdadeiro dono da
cidade. A ponte, que sempre serviu para separá-los, era agora objeto de comum
interesse entre eles, talvez a primeira convergência desde que a cidade nasceu.
A disposição em permanecer na ponte
era imensa. Já havia comércio por ali, afinal todos precisavam comer, e porque
não tomar uma cerveja, fumar um cigarro, comprar guarda chuvas. A resistência
era tamanha que alguns começaram a acampar em cima da ponte, e pouco a pouco as
barracas foram se multiplicando, até que alguém resolveu construir uma casa com
tijolos e telhas, e essa ideia se alastrou para os dois lados. As casas, que
agora eram muitas, estavam muito próximas umas das outras, de maneira que foi
preciso abrir picadas entre elas por onde as pessoas pudessem caminhar e andar
de bicicleta. Os mais engenhosos subiram prédios, instalaram faróis entre os
cruzamentos e houve até quem pensasse em um metrô. Alguns voluntários se
ofereceram para dar aulas, outros para cuidar dos enfermos, e com o tempo
inauguraram escolas e hospitais em ambos os lados ocupados. Até que as duas
cidadelas suspensas, tão grandes que estavam, caminhando uma em direção à outra, estavam
separadas por míseros metros. E perceberam todos que, ao resistirem bravamente uns
contra os outros, acabaram construindo uma nova cidade em cima da ponte, que
simbolizava a união entre ambos, e onde não havia pontes para separá-los.