domingo, 3 de maio de 2009

Viagem e "Viagens"...

Nossa imagem da África é bem romantizada.
Animais selvagens.
Tribos isoladas no meio do continente.
Uma natureza intocada.
Paisagens deslumbrantes.
O “mundo primitivo”.
Aí cheguei aqui ano passado e vi que não era bem assim.
Vivi um ano num ambiente urbano.
Claro, Maputo é bem diferente de São Paulo.
Mas com quase tudo aquilo que eu estava acostumado.
Supermercados, cinemas, vida noturna, Coca-Cola e etc.
Fui à Johannesburgo, viajei pra outros lugares.
E aos poucos fui desmontando essa imagem romântica.
O mundo muda.
E aqui não é diferente.
Construí uma visão mais “atual” da África.
Pelo menos do Sul da África.
Globalização, Comunicação, grandes cidades.
O “mundo contemporâneo”.
Mas essa semana levei uma rasteira.
A viagem à Gorongosa bagunçou minhas convicções.
É bem mais fácil dividir as coisas.
“Primitivo” de um lado, “Contemporâneo” do outro.
Ou um, ou outro.
Imutáveis
Chegamos até a acreditar que eles existem...
A viagem começou contemporânea.
Foi patrocinada por grandes empresas.
Fomos de avião até a cidade da Beira.
Os tempos mudaram.
Lá alugamos três “4x4” pra seguir nosso roteiro.
“Nosso”, afinal éramos 12.
De quatro nacionalidades diferentes.
Viva a globalização!
Primeiro destino: uma gruta de morcegos.
Chegamos e entramos na gruta, certo?
Errado.
A gruta não é nossa.
Numa pequena comunidade, moram os “guardiões” da gruta.
Pra entrar lá, há um ritual a ser cumprido.
Temos que ser aceitos.
Mundo primitivo?
Para o ritual, levamos muito vinho e cigarros.
Dizem que se aproveitam dos turistas pra ganhar em cima.
Não duvido (e imagino que seja isso mesmo!).
Mas o ritual não é pura invenção.
Enganar turistas e seguir tradições não são excludentes.
Fizemos e fomos aceitos.
Quer dizer...
Houve um pequeno probleminha.
Os espíritos queriam “suruma” (maconha), e não tabaco.
Juro que não sei em quem acreditar.
Mas entramos.
A gruta foi incrível.
Linda, enorme.
Nunca vi tanto morcego junto.
Voando na nossa cara.
Literalmente “cagando e voando” pra gente (ou na gente).
Acampamos com barracas e uma grande infra-estrutura.
Afinal, à noite faz frio.
Para nós.
Os guias dormem ao relento.
Primitivos.
De lá seguimos para subir a Serra da Gorongosa.
Uma trilha aparentemente inóspita, isolada.
Impossível viver num lugar tão distante.
Para nós, contemporâneos, claro.
Quanto mais isolado o lugar, maior a surpresa.
Do meio dos matos mais improváveis, surgiam pessoas.
Sim, pessoas, por que não?
Porque vivem isoladas e no meio do mato não são pessoas?
Olhavam-nos e sorriam, cumprimentavam.
Sinceramente, não sei o que pensam quando nos vêem.
Se nos vêem como mais avançados.
Se nos vêem como uns atrasados.
Se nos classificam assim, estúpida e hierarquicamente.
Mas sorriem.
Às vezes estranham.
Bom, até eu estranharia.
Alguns acordam logo cedo e sobem ao cume pra caçar insetos.
Pra comer!
Comer insetos!
Primitivos?
Fome?
Mas afinal qual o problema em se comer insetos?
Melhor tomar uma Coca-Cola?
No ponto mais alto da Serra, um homem vive sozinho.
Vive a 1850 metros de altura, no meio das pedras.
Sozinho.
É o guardião do cume.
Mas não é um guardião espiritual.
É um guardião da Motorola.
Que colocou lá uma antena e tem medo de ladrões.
Atrapalhando um pôr-do-sol dos mais lindos que já vi.
Mas permitindo a comunicação entre os homens
É o Deus Motorola e seu fiel guardião.
Primitivo, contemporâneo?
Sei lá.
Sei que nosso último destino foi o Parque da Gorongosa.
No meio do nada, um esforço pra chegar, mesmo de 4x4.
Fomos fazer safári, ver animais selvagens.
Leões, elefantes, hipopótamos, uma natureza intocada!
Mas com uma infra-estrutura inacreditável.
Chalés, piscinas, jantar a 450 meticais!
Mas queriam o quê?
Mordomia no meio do nada?
Num lugar lindo?
E ainda por cima pagando barato?
O mundo não é perfeito.
E por isso não vimos nenhum grande animal.
“Mas eu paguei (caro!), cadê os leões, os elefantes?”
Não importa as paisagens das mais lindas que você já viu.
Você pagou pelos leões.
No mundo contemporâneo é assim.
Tudo se paga.
Como se o mundo fosse seu.
Mas o leão não está nem aí pra você.
O leão não é contratado pra aparecer pra você.
Ou é.
Fizemos o safári no 1º de Maio.
Feriado.
Dia do Trabalho.
E não se trabalha no Dia do Trabalho.
Trabalho, o orgulho do homem contemporâneo!
Afinal, o homem contemporâneo trabalha.
E o progresso é fruto do trabalho.
Como se caçar insetos não fosse um trabalho.
Como se viver com a natureza não fosse progresso.
Como se contemporâneo e primitivo significassem alguma coisa.

*Primeiramente quero agradecer todos aqueles que compartilharam comigo uma das melhores viagens que já fiz na vida.

E avisar aos que não foram que como fui sem máquina fotográfica, mando fotos depois que conseguir com o pessoal felizardo que também fez a viagem.

7 comentários:

Carol disse...

Toinho,
teu texto tá incrível! Leve e profundo ao mesmo tempo. Consegues brincar com as palavras como uma malabarista! Parabéns! Tradiziste também um pouco da minha sensação da viagem! Fico feliz de termos compartilhado tantos momentos bacanas!
Não pare de escrever, ok?

Unknown disse...

Toinho,
O teu texto sintetiza o que foi a viagem à Gorongoza. Dizer mais, só complicaria... Interessante a forma como jogaste com a dicotomia primitivo e contemporâneo.
Podes mandar publicar este teu texto num dos jornais da praça?
Um abraço

Anônimo disse...

Antonio,

Alem da viola tens tambem o don da palavra (escrita)! Continua, porque os argumentos da vida são muitos!

Mario

NB - Envio já umas fotos para colocares no blog.

Fellipe Duarte, O Chueco disse...

O Leão não apareceu porque foi demitido do Galo, ehhhhh rapaz aqui no Brasil é assim, o Leão pode ser o Rei da Selva por ai, mas aqui o Galo coloca o Leão pra correr....

MFAA disse...

Gostei, senti-me lá... valeu!

Anônimo disse...

Toinho, adorei o teu texto, caladinho, caladinho mas no final conseguiste surpreender todo o mundo conseguindo "fotografar" cada momento da nossa viagem na tua mente, valeu cara, pode ser mais uma materia para a exposição.
Abraços
Lulu

Marília disse...

Adorei o texto, querido!
Aliás, adorei o blog, confesso que foi a primeira vez que entrei e fiquei lendo tudo!!
Amei a Matemática Moçambicana e o lance do "polícia" tb é fantástico!!
Todos os textos estão demais, dá até pra sentir um gostinho das suas ironias.
Beijos!!