quarta-feira, 6 de agosto de 2014

As pontes que separam

       Por entre as escadarias e ruelas, com o sol despontando dentre os morros, e o frio gelando as extremidades, seguiam todos para o ponto de ônibus. Não era um dia especial, muito pelo contrário. Era mais uma segunda-feira de trabalho, e o horário do ônibus fez todos apertarem o passo. Dessa vez, porém, o ônibus não passou. Aos poucos, a multidão foi se aglomerando em volta do ponto, onde nenhum ônibus havia passado desde o nascer do dia. Em meio à confusão, um telefone celular, um wi-fi, uma informação: não foram apenas eles os afetados pela falta de ônibus, mas toda a periferia da cidade.
            
          A cidade, aliás, era curiosa. No centro, uma ilha de concreto, com arranha-céus, shopping-centers e carros imponentes, ocupados geralmente por uma ou duas pessoas. A palavra ilha, por sinal, não era uma metáfora, mas uma realidade. O rio que a cortava a cidade bifurcava-se em determinado ponto, e seguia em direções diferentes, para, um pouco mais à frente, juntar-se de novo, criando condições para o surgimento de um núcleo urbano plano e espaçoso. Em volta desse núcleo, nas margens do rio, porém, estranhamente sucediam-se morros sobre morros, que cercavam a cidade desenvolvida e nos quais apinhava-se a grande massa da população local. Atraídos pelas maravilhas da ilha desenvolvida, quase todos os habitantes dos morros deslocavam-se para lá atrás do sonho urbano, e acabavam sendo os grandes responsáveis pela construção da riqueza da cidade – ainda que não pudessem usufruir dessas condições.
           
        Entre a ilha e os morros, erguiam-se pontes que, silenciosamente dividiam a cidade. Não que fossem fechadas, ou controladas, mas inibiam o contato real entre ambos os lados. Como dito, grande parte da população periférica deslocava-se para o centro todos os dias para trabalhar, mas a relação era exatamente essa: apenas profissional. Aquela não era a cidade deles, e eles estavam ali apenas a serviço dos engravatados da ilha. Cidadãos que, imersos em seus latptops e tablets, não eram capazes nem de cumprimentar aqueles que todos os dias limpavam suas mesas e colocavam gasolina nos seus carros. As pontes, assim, não conectavam a ilha com os morros, como se poderia supor, mas sim separavam radicalmente seus habitantes. Sob a fachada da integração, as pontes serviam para permitir que o morro produzisse a riqueza da ilha, mas sem acessá-la verdadeiramente. Eram, por assim dizer, o símbolo maior da fábula da cidade unificada.

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       E foi em direção a essas pontes que os moradores da periferia caminharam quando perceberam que nenhum ônibus passaria para levá-los ao trabalho na ilha. A paralisação, porém, não ocorreu sem aviso. Pelo contrário, os motoristas e cobradores percorreram, na noite anterior, com alto-falantes e carros de som, todos os morros circundantes da ilha, avisando aos moradores da periferia que não trabalhariam na manhã seguinte. Não foi anunciado em nenhum tele-jornal, nem postado em qualquer rede social. O aviso foi dado fisicamente, rua por rua, porta por porta, mas ninguém ouviu. Reunidos em volta da ponte, os afetados pela paralisação não acreditavam que simplesmente não perceberam o aviso. Perceberam, sim, que aquele mundo mágico e ilusório da ilha havia penetrado em suas vidas particulares, em pleno morro. As noites, que antes eram desenroladas por longas conversas no muro de casa e nas mesas de bar, de uma convivência coletiva e de um território compartido, tinham sido substituídas pela solidão da internet e pela surdez ao próprio entorno. O único som ouvido era o da televisão, e a única realidade existente era a passada pelo noticiário. Estavam conectados com o mundo todo, menos com seu próprio lugar. Parados na ponte, juntos, enfim tomaram consciência. E decidiram bloquear os acessos.
            
        Os dias se passaram. Estranhamente, os habitantes da ilha não foram até as pontes entender o que havia acontecido. Na verdade, não sabiam o caminho. Sabiam que seus empregados e funcionários viviam perto de sua próspera cidadela, mas nunca se interessaram em saber onde realmente era. Quem realmente eram. Obviamente que sentiram sua falta. Mas resolveram como sempre resolviam tudo: consumindo. Como não tinham ninguém pra lavar sua louça, compravam pratos novos a cada refeição. Trocavam o piso cada vez que este acumulava um pouco de sujeira. As lojas e mercados, porém, foram escasseando. A comida faltava, os pratos e o piso não podiam mais ser repostos. Ficaram todos desesperados. Até que alguém teve uma ideia.

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            Antes da fundação da cidade, viviam alguns poucos grupos entre as margens do rio, no exato núcleo onde se desenvolveu a ilha de concreto, em cuja construção tais grupos ficaram para o lado de dentro. E se recusaram veementemente a sair. Ergueram-se prédios, escavaram-se metrôs, e aquelas casinhas simples continuavam lá. Foram ameaçados, alguns inclusive foram mortos, mas nunca saíram de lá. Vinham de um tempo onde o território era parte deles mesmos, e não seriam alguns quilos de concreto que fariam com que se mudassem. Com o progresso, foram esquecidos. Os quarteirões onde moravam eram desvalorizados, tidos como perigosos. Eram resquícios de um tempo passado, descompassado com a modernidade. Rugosidades de um mundo planificado e retilíneo. Aquelas pessoas, sem dúvida, sabiam como sobreviver na dificuldade. E foi por isso que, desorientados, os habitantes da ilha foram buscar ajuda justamente naqueles que tentaram eliminar por tantos anos e séculos.

O contato inicial, obviamente, não foi amistoso. Os habitantes da ilha insistiam na arrogância de tratar os remanescentes de forma servil, enquanto esses não demonstravam nenhum tipo de solidariedade para com os primeiros. A relação foi amolecendo, porém, na medida em que ambos perceberam que estavam no mesmo barco. Por maior que fosse a distância entre eles, em todos os aspectos, estavam unidos por uma mesma situação de confinamento forçado na ilha. Enquanto as pontes permanecessem interditadas, o abastecimento local ficaria impossibilitado, e outras formas de sobrevivência precisariam ser desenvolvidas. Os mercados ficaram vazios, e o dinheiro perdeu sua utilidade. Acostumados que estavam a serem governados pelo dinheiro, os habitantes da ilha não conseguiam enxergar outra forma de se conseguir alimentos que não os comprando.

Nesse momento, os remanescentes de tempos pretéritos, insistentes como sempre foram, disseram que mesmo naquele mar de concreto era possível encontrar algum espaço para plantar algumas frutas e legumes. A velocidade das plantas, porém, não é a mesma da cidade, e por isso teriam que ser pacientes. Mais do que isso, teriam de frear seus hábitos de consumo desmedido, desacelerando drasticamente seus espíritos empreendedores e imediatistas. Se até ali o acesso a qualquer produto ou informação se dava em tempo real, era chegado o momento de saturação. O relógio não seria mais aquele dos micro-segundos e da eficiência, seria a vez do tempo necessário, o tempo orgânico. E assim, lenta, porém verdadeiramente, a ilha se fazia existir pela primeira vez.

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Ao mesmo tempo em que a ilha passava por profundas transformações, os morros também se agitavam. Indignados com a falta de relação com seu território, os habitantes da periferia buscavam uma maneira de resgatar essa simbiose. Lembravam das estórias de seus pais e avós, do tempo em que a calçada era a extensão das casas e a cultura era construída ali, na rua. As músicas, os artistas, as festas, todos eram fruto de muito trabalho coletivo e da vivência de um território compartilhado. Diferentemente da cultura de massa, enfiada goela abaixo pelas grandes mídias e representativa de uma realidade bem distante de seus receptores, a cultura popular era, sobretudo, uma manifestação dos lugares e de sua gente. A questão para as pessoas do morro não era mais o que procurar, mas sim onde procurar esses registros.

Sem perceber, porém, ao consumir as tecnologias modernas, milhares de pessoas, munidas do mais simples dos equipamentos audiovisuais, tinham registrado nos últimos anos centenas de manifestações locais, de dança, canto, e qualquer ação que se desenrolava fora da ilha de concreto. E foi exatamente a partir desses materiais que os habitantes das periferias puderam ter contato com sua cultura, puderam ver e ouvir registros históricos de seus ancestrais, e pensar a possibilidade de um novo cotidiano.

Reunidas, as pessoas rumaram novamente para as pontes, no intuito de mostrar à ilha do que eram feitos aqueles que construíram sua cidade, ao mesmo tempo em que os habitantes da ilha seguiam o mesmo caminho, procurando conhecer todo o universo que compunha a cidade e com o qual eles não tinham nenhum contato verdadeiro.

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Se engana, contudo, quem acha que o encontro, cada grupo em um lado da ponte, foi de abraços e pedidos de desculpa. A relação entre a ilha e os morros foi sempre de hostilidade, e não seria no primeiro contato real entre eles que iria haver um consenso. Ambos tinham aprendido que por mais tentador que fosse, o imediatismo era superficial, e ao invés de tentar uma conciliação instantânea, começaram a se insultar desmedidamente. Havia sim aqueles que tentavam contemporizar, a multidão nem sempre é una, e sempre existem os que preferem o diálogo, mas não foi suficiente. De insultos, passaram a atirar paus, pedras, celulares e televisores uns contra os outros. E decidiram ambos os grupos que não iriam sair dali até que fossem vitoriosos no confronto. Esqueceram-se de tudo que tinha acontecido até ali, da consciência que lhes tinha despertado, e do quanto seus opostos foram importante para isso. Para eles, no momento, quem controlasse a ponte, quem dominasse o acesso, seria o verdadeiro dono da cidade. A ponte, que sempre serviu para separá-los, era agora objeto de comum interesse entre eles, talvez a primeira convergência desde que a cidade nasceu.

A disposição em permanecer na ponte era imensa. Já havia comércio por ali, afinal todos precisavam comer, e porque não tomar uma cerveja, fumar um cigarro, comprar guarda chuvas. A resistência era tamanha que alguns começaram a acampar em cima da ponte, e pouco a pouco as barracas foram se multiplicando, até que alguém resolveu construir uma casa com tijolos e telhas, e essa ideia se alastrou para os dois lados. As casas, que agora eram muitas, estavam muito próximas umas das outras, de maneira que foi preciso abrir picadas entre elas por onde as pessoas pudessem caminhar e andar de bicicleta. Os mais engenhosos subiram prédios, instalaram faróis entre os cruzamentos e houve até quem pensasse em um metrô. Alguns voluntários se ofereceram para dar aulas, outros para cuidar dos enfermos, e com o tempo inauguraram escolas e hospitais em ambos os lados ocupados. Até que as duas cidadelas suspensas, tão grandes que estavam, caminhando uma em direção à outra, estavam separadas por míseros metros. E perceberam todos que, ao resistirem bravamente uns contra os outros, acabaram construindo uma nova cidade em cima da ponte, que simbolizava a união entre ambos, e onde não havia pontes para separá-los. 

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