sexta-feira, 18 de julho de 2014

Desconstruindo Mandela

Quando o Mandela morreu, no final do ano passado, não cheguei a me surpreender com a comoção causada, pois o que mais eu admirava nele era a capacidade de ser respeitado por todos, em todos os lugares.

Por outro lado, sempre tive um pé atrás com unanimidades, e uma figura pública como Mandela, praticamente isolada de críticas, também me despertava curiosidade.

Foi quando, um pouco depois da sua morte, li um artigo que tentava argumentar que Mandela havia deixado um legado contraditório, já que após sua passagem pela presidência a estrutura social sul-africana não se transformou substancialmente.

Instigado pelo artigo, resolvi enviá-lo a amigos em Moçambique, que prontamente criticaram-no, dizendo que além de usar dados questionáveis, o artigo não levava em consideração que Mandela não conduzia sozinho o país, me fazendo refletir também que a mudança que a África do Sul buscava não podia ser alcançada a curto ou médio prazo.

De qualquer maneira, meus amigos disseram que o artigo valia pela tentativa de humanizar o Mandela, colocando-o mais próximo de nós, simples mortais, sujeitos a erros e acertos, e recomendaram a leitura de sua autobiografia, “Um longo caminho para a liberdade”.

Reconheci que sabia pouco sobre a “pessoa” Mandela e sua atuação política, e resolvi tirar minhas férias de fim de ano para ler o livro, um tijolo de 500 páginas grandes e com letras pequenas.

Logo de cara percebi que, diferente da sua imagem de pacifista, fruto da política de negociação com o regime do apartheid, Mandela durante toda a vida causou transtornos por onde passou, fato reconhecido por ele mesmo em vários momentos do livro.

Seja na família, na comunidade em que nasceu, na universidade, em seu trabalho como advogado ou na política, ele sempre foi um questionador, e diversas vezes teve problemas com isso.

Mais do que isso, foi um dos fundadores do Umkhonto we Sizwe, braço armado da ANC, ao perceber que o diálogo não funcionaria mais na luta que ele e seus companheiros empreendiam, e entrou na luta armada.

Fez inclusive treinamento militar na Etiópia, o que o levou a ser procurado mundialmente como terrorista, pelos mesmos que hoje em dia elevam sua imagem a de um semi-Deus.

Muitas vezes foi questionado pelos próprios companheiros, ao tomar decisões sozinho e ir no sentido contrário do que se planejava em conjunto, argumentando que, como um pastor de ovelhas, o verdadeiro líder deixava que o rebanho seguisse na frente, controlando de trás (uma analogia um tanto quanto polêmica).

Mas, para mim, a parte mais interessante do livro é quando Mandela assume que passou de um militante radical a um negociador, e dá sua explicação para tal.

Reconhece que, enquanto militante, o radicalismo é necessário, mas ao assumir a figura pública de governante, não pode mais agir como se estivesse na luta armada.

Como militante, ele representava um determinado grupo com determinados interesses, mas como presidente ele teria que representar toda a África do Sul, inclusive os brancos, e que por pior que fosse a desigualdade racial no país, era um dado real com o qual ele precisava lidar.

O presidente do Zimbabwe, Robert Mugabe, por exemplo, expropriou as terras de todos os brancos do país, e nem por isso a situação zimbabweana melhorou consideravelmente.

Em suma, Mandela foi o presidente que poderia ser.

Não transformou a vida dos sul-africanos em um paraíso, mas nenhum presidente em nenhum continente conseguiu fazê-lo.

Como dito no início, ele fazia parte de um grande projeto de seu partido, onde não trabalhava sozinho, e a transformação social na África do Sul exige muito mais do que um presidente bem intencionado.

Gostaria de saber melhor sobre o processo de seu enriquecimento, e gostaria muito que tivesse uma explicação razoável, já que enriquecer não significa necessariamente alinhamento a ações ilícitas.

Importante ressaltar, se ele enriqueceu por causa da política, nada mais justo para um homem que dedicou sua vida toda, ficando longe da família e de todas as pessoas próximas durante longos anos, a uma causa maior, independente se você concorda ou não.


Depois de tudo isso, da pequena imersão no personagem Mandela, a minha maior admiração continua sendo a mesma de antes: apesar do caminho tortuoso, ele adquiriu uma capacidade incrível de ser respeitado no mundo todo.

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